Nos últimos dois anos fiscais, o Governo Provincial do Kuando-Kubango gastou mais de 1,624 mil milhões de kwanzas em alimentos para o palácio do seu governador, calamidades e catástrofes naturais, bem como para famílias vulneráveis. Esses valores não abrangem as despesas contraídas pelos municípios com a mesma finalidade. Do montante em questão, 94,5 milhões foram pagos para abastecer um orfanato, que na realidade apenas recebeu comida no valor de três milhões de kwanzas, ou seja, 3,1% do valor oficialmente despendido.

É O QUE PARECE

Após meses de investigação, o Maka Angola concluiu que o palácio do governador José Martins gasta mais em alimentos do que o apoio total que presta às vítimas das calamidades e catástrofes naturais, assim como às famílias vulneráveis. Do valor acima mencionado, o palácio consumiu 723 milhões de kwanzas – o equivalente a 44,4% do total da despesa em análise. Para as famílias vulneráveis, o governo provincial dedicou 328 milhões de kwanzas (20,1%), enquanto destinou 204 milhões (12,5%) ao apoio às vítimas das calamidades e catástrofes naturais. Os coffee-breaks (lanches) do governo provincial consumiram 128 milhões de kwanzas (7,8%).

Feitas as contas, os 723 milhões que nos últimos dois anos foram gastos para abastecer a mesa de refeições do governador e seus convivas representam um total de 10 328 salários mínimos, fixado em 70 mil kwanzas mensais, conforme o Decreto Presidencial n.º 152/24. Ou seja, o Estado gasta uma média mensal de 430 salários mínimos com o pitéu de José Martins.

No ano passado, na mesma província, as despesas com comida ultrapassaram os 883 milhões de kwanzas. Deste valor, a alimentação do governador José Martins e seus conviventes custou 355 milhões de kwanzas aos cofres do Estado. Os maiores fornecedores do palácio foram as empresas Sedar Lda., com 181 milhões de kwanzas, e a Ango-Djib, com 111 milhões de kwanzas em facturas pagas. O Maka Angola não contabiliza aqui as despesas devidamente identificadas para as residências protocolares dos vice-governadores.

No ano de 2023, a despesa palaciana de José Martins, só em comida, foi de 368 milhões de kwanzas. 

A Sedar Lda., com sede no Huambo, é detida pelos cidadãos libaneses Ali Akhdar e Hassan Achour. Nos últimos dois anos, facturou 930 milhões de kwanzas apenas com vendas ao governo de José Martins, a que acresce o volume de negócios com os municípios. Nos primeiros três meses do corrente ano, a Sedar já facturou 272 milhões de kwanzas com a venda de alimentos e outros produtos ao governo provincial do Kubango. Por sua vez, e no mesmo período, a Ango-Djib embolsou 126 milhões de kwanzas.

Além dos valores incompreensíveis, há ainda outro senão: desde há dois anos que o governador José Martins não vive no palácio, residência oficial. Vive, sim, na residência protocolar anteriormente atribuída à vice-governadora para a Área Política, Social e Económica, no Condomínio das 10 Casas, junto à sede do Governo Provincial. Agora do Kubango.

Então, a questão é simples: quem realiza tantos banquetes no palácio do governador, que se encontra actualmente desocupado e raramente recebe visitas oficiais?

Naturalmente, reservamos o direito de resposta ao Governo Provincial do Kubango, esperando que quebre a política de silêncio que adoptou em relação ao Maka Angola. Com a nova divisão político-administrativa, o Kuando-Kubango foi dividido em duas províncias – o Kuando e o Kubango. José Martins permanece como governador, agora do Kubango, mantendo-se na capital Menongue, sem que toda a estrutura de esquemas tenha sofrido qualquer alteração. Os seus mais directos colaboradores continuam nos mesmos cargos.

FACTURAS FICTÍCIAS PARA O ORFANATO

Para melhor compreensão do destino que foi dado aos dinheiros canalizados para a rubrica “alimentos”, o Maka Angola expõe o caso do Centro de Acolhimento “Mbembwa” Padre João Bosco dos Santos, no Menongue, que actualmente alberga 42 crianças órfãs e com deficiências.

Em 2023, o Governo Provincial pagou à empresa Ango-Djib um total de 72 milhões de kwanzas para a provisão de alimentos ao Centro. No mesmo ano, pagou mais 22,5 milhões de kwanzas à empresa Galf com a mesma finalidade.

Os 94,5 milhões de kwanzas – em alimentos – destinados ao centro causaram surpresa à directora-geral do orfanato, a irmã Zélia Pinto. Primeiro, ao ouvir o valor, a responsável responde com risos ao ouvir o valor e afirma: “De vez em quando, em ocasiões especiais, recebemos alimentos do Governo Provincial, mas nunca nos dizem os valores. Este montante [de 94,5 milhões] é simplesmente estratosférico.”

“Actualmente, estamos com falta de alimentos e temos de andar a pedir esmolas para alimentar as crianças. Faz-nos uma certa confusão!”, lamenta a irmã Zélia Pinto, da Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias.

O Maka Angola conferiu as seis notas de entrega de alimentos feitas pelo Gabinete Provincial da Acção Social, Família e Igualdade do Género do Governo Provincial ao Centro Dom Bosco, datadas de 25 de Janeiro a 23 de Novembro de 2023. Ao todo, foram entregues 29 produtos alimentares num valor aproximado de três milhões de kwanzas – aos preços actuais. Destes, o arroz tem o custo mais elevado, de 700 mil kwanzas por 925 quilos. Seguem-se o leite em pó, com um custo de 369 mil kwanzas, e o óleo vegetal, a 158 mil kwanzas por 84 litros.

Por falta de preços nas notas de entrega, o Maka Angola usa os preços actuais da Ango-Djib para os mesmos produtos, tomando em consideração o facto de, como nota o Expansão, os preços da cesta básica terem sofrido um aumento de 36 por cento em relação a 2023.

Nota-se então uma diferença de 91,5 milhões de kwanzas entre o que foi destinado para o Centro Dom Bosco e o que realmente foi entregue à mesma instituição em 2023.

Em 2024, apesar de não ter registado de forma específica, no sistema oficial de contabilidade, qualquer despesa para o orfanato, o Governo Provincial procedeu à entrega de um total de 13 produtos alimentares à instituição, no valor total aproximado de dois milhões de kwanzas. O arroz teve um custo, aos preços actuais, de 407 mil kwanzas, a farinha de trigo de 380 mil kwanzas e a massa alimentar cifrou-se em 250 mil kwanzas. Trata-se de sete entregas feitas entre 4 de Janeiro a 24 de Outubro do ano passado.

Este caso configura um duplo crime de peculato e de abuso de confiança, sem prejuízo de outros crimes colaterais, nomeadamente o recebimento indevido de vantagens e a quebra do dever de probidade pública.

Como se pode classificar a qualidade humana de gestores públicos que usam o nome de um orfanato, de crianças em condições de extrema necessidade, para a locupletação de fundos públicos? Cabe ao leitor decidir.

Este tipo de esquemas que aqui desvendamos, infelizmente normalizado na administração do Estado, obedece à sincronização de um quarteto de decisores e executores do Governo Provincial: o governador, José Martins; o secretário-geral, Adelino Mangonga Manuel; o director do Gabinete de Estudos, Planeamento e Estatística (GEPE), Elias Paganini Hossi da Silva; e o chefe do Departamento de Gestão do Orçamento e Contabilidade, Pedro Kawengo Chioca Cufa.

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS

Passemos, então, ao apoio às famílias vulneráveis. Em 2018, a Comissão Multissectorial para a Verificação da Seca na província identificou, através de um inquérito, 61 369 famílias (num total de 306 652 pessoas) em situação de vulnerabilidade na então província do Kuando-Kubango. Este dado permite-nos enquadrar as despesas alimentares que o governo local continua a registar como apoio aos mais desfavorecidos.

Em 2024, o apoio alimentar às famílias vulneráveis cifrou-se em 268 milhões de kwanzas. Deste montante, a Sedar alegadamente forneceu produtos no valor de 263 milhões de kwanzas. Este valor exclui gastos contraídos directamente pelos municípios.

Por sua vez, o ano de 2023 registou gastos de 65 milhões de kwanzas. A empresa Namene Livongue, de Victorino Fernando, foi a principal fornecedora, com uma factura avaliada em 49,5 milhões de kwanzas.

Um membro da sociedade civil, que prefere o anonimato por temer represálias, desvenda a rubrica de apoio às famílias vulneráveis, designado de “Mamã Levanta”. Esta iniciativa é liderada pela actual secretária provincial da Organização da Mulher Angolana (OMA), Cecília Bimba Intcha, cargo que acumula com o de directora provincial dos Transportes e Mobilidade Urbana do Kubango.

“Conhecemos o programa Mamã Levanta, Este programa, supostamente do Governo Provincial, saca dinheiro dos cofres do Estado para apoio às actividades da OMA, o braço feminino do MPLA, que se encontrava moribunda na província. É uma forma de apoio directo às mulheres relevantes da OMA”, explica o membro da sociedade civil.

Por sua vez, um membro influente da estrutura local do MPLA apresenta outra versão. “São mais as amigas e familiares dos decisores locais que vão aos armazéns levantar alimentos e dinheiro em mãos, em nome das famílias vulneráveis.”

Não será verdade o boato segundo o qual a maioria destes gastos inscritos na contabilidade pública são fictícios, sem qualquer correspondência com a verdade, e que se trata de formas de transferência de dinheiro para empresas privadas, que por sua vez asseguram várias mordomias aos responsáveis públicos, como viagens ao estrangeiro, contratação de acompanhantes e entretenimento ou abastecimento de cantinas de amigas dos governantes. Será mentira que as empresas privadas recebem o dinheiro sem prestar o bem ou serviço, ficam com uma comissão e asseguram as despesas privadas dos dirigentes.

CALAMIDADES E CATÁSTROFES NATURAIS

Passemos às vítimas das calamidades e catástrofes naturais. Em 2024, o Governo Provincial registou uma despesa de 132 milhões de kwanzas em alimentos fornecidos exclusivamente pela Sedar para apoio às referidas vítimas.

Em 2023, a única despesa consignada para essa missão recaiu na Propor Desafios Lda., de Víctor Kavinokeka Paulo, que cobrou 72 milhões de kwanzas pela venda de alimentos para apoio às vítimas.

“Só há distribuição de alimentos durante os comícios do MPLA, para angariar simpatizantes. Houve quatro grandes comícios nos dois últimos anos, para a celebração do Dia da Batalha do Kuito-Kuanavale (23 de Março) e o Dia da Paz (4 de Abril). Nos comícios de José Martins, de 2023 e 2024, o governo provincial distribuiu alimentos e instrumentos de trabalho (enxadas e catanas). Aos sobas deram um garrafão de vinho a cada, levantados na antiga loja do Wapossoka”, relata a nossa fonte.

O mecanismo de agraciar os sobas com garrafões de vinho é uma reedição da prática colonial de destratar as autoridades tradicionais, tratando-os como seres inferiores que merecem pouco mais do que serem embebedados. E os sobas parecem sujeitar-se a esse papel de forma servil.

COFFEE-BREAKS

Por sua vez, as despesas com os coffee-breaks (lanches) do Governo Provincial atingiram os 128 milhões de kwanzas.

As empresas Sociedade Comercial Bingo Bingo (39 milhões), Salud & Filhos (34 milhões) e Fradami Teresa (35 milhões) destacaram-se como os maiores fornecedores de coffee-breaks para o governo local.

Contas feitas, a título de ilustração, para a III Sessão Ordinária do Governo Provincial, em 2024, a Salud & Filhos serviu um coffee-break no valor de 5,75 milhões de kwanzas para 50 pessoas – o que corresponde a um custo de 115 mil kwanzas por lanche para cada participante.

CONCLUSÃO

Desde 2019, o Maka Angola tem acompanhado de perto os sucessivos governos do Kuando-Kubango, expondo muitos casos de corrupção.

Regra geral, os autores dos actos corruptos são promovidos ou guindados para outros cargos de premiação. Tal é o caso do ex-governador Pedro Mutindi, cujo esquemas de corrupção, eram tão toscos que até vendia ovos fictícios, em metros cúbicos, para o Hospital Geral da província. Em 2019, passámos horas a depor na Direcção Nacional de Prevenção e Combate à Corrupção. Apresentámos dezenas de facturas a comprovar os desvios de Pedro Mutindi e familiares. Qual foi o resultado? A 27 de Março passado, o presidente João Lourenço premiou Pedro Mutindi com o cargo de embaixador na Namíbia. A política do carrossel (mudar um corrupto de um lado para o outro) não combate a corrupção; pelo contrário, espalha-a ainda mais.

Podemos apresentar mais provas de como o presidente da República parece assumir abertamente o manto de promotor e protector da corrupção, que hoje se pratica no seu regime com toda a impunidade e arrogância. Não é o que queríamos, não é o que esperávamos. É o que temos.

Hoje, temos o quarteto de José Martins a abusar da confiança de um orfanato para desalmadamente desviar fundos públicos, sem que isso possa causar qualquer vergonha ou repúdio da parte de quem o nomeou. Será tudo farinha do mesmo saco? Esta história do orfanato tem de ser bem explicada ou punida verdadeiramente. Indicia ser um dos exemplos mais desprezíveis de saque privado dos bens públicos realizado por governantes. Não basta anunciar investigações. A instrução criminal tem de ter princípio, meio e fim. Os cidadãos e empresários honestos que têm dificuldades ou se atrasam a pagar os seus impostos são praticamente tratados como criminosos pela Administração Geral Tributária (AGT). Já os governantes que saqueiam o dinheiro dos contribuintes… são os heróis do actual regime.

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