IMPRENSA LIVRE PARA QUÊ?
Pelo menos 19 jornalistas foram vítimas de desaparecimentos forçados em todo o mundo durante a última década e o seu paradeiro é ainda desconhecido, declarou esta sexta-feira a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF).
Este número representa mais de metade dos 32 jornalistas desaparecidos nos últimos dez anos, declarou a RSF num comunicado divulgado por ocasião do Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados.
“Os governos são directamente responsáveis por esta situação porque, por definição, um desaparecimento forçado refere-se a uma privação de liberdade causada por agentes do Estado que negam ou ocultam o destino e o paradeiro da pessoa desaparecida”, declarou a organização de defesa da liberdade de imprensa.
A RSF, com sede em Paris, salienta ainda que “uma dúzia de governos” está por detrás de todos estes desaparecimentos.
Dos 19 jornalistas que foram vítimas de desaparecimento forçado desde 2015, quatro casos ocorreram no Burkina Faso, país onde o fenómeno se intensificou recentemente.
O Mali somou três e a República Democrática do Congo mais dois, enquanto na Palestina, mais dois – Haytham Abdel Wahed da Ain Media e Nidal al-Wahidi do site de notícias News Press – continuam desaparecidos depois de terem sido “raptados pelo exército israelita em 7 de Outubro de 2023”.
Desde o início de 2024, o número de jornalistas desaparecidos aumentou para seis, com casos também em países como a Ucrânia e a Nicarágua, mais um do que no mesmo período de 2023.
“A RSF apela à ratificação universal da Convenção Internacional para a Protecção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, que foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2006, mas que só foi ratificada por 75 países até à data”, disse Antoine Bernard, director de advocacia e assistência da RSF, em comunicado.
Thomas Jefferson (o terceiro presidente dos Estados Unidos e o principal autor da declaração de independência dos EUA) disse que “se tivesse de escolher entre um governo sem jornais e jornais sem governo, não hesitaria em escolher esta última”. Sem imprensa livre, não há democracia. Em Angola o MPLA entende que a sua “democracia” se faz sem uma imprensa livre. E a comunidade internacional finge que não vê.
O ex-ministro da Comunicação Social angolano, João Melo, considerava, em 2019, que “ainda não houve tempo” para “progressos notáveis” de liberdade de imprensa, afirmando no entanto que houve “avanços inegáveis” da nova governação. Quem diria…
Vejamos então qual é, do ponto de vista oficial do Governo do general João Lourenço, a missão de quem tem a incumbência de controlar, formatar e manietar a comunicação social, seja através de um ministério específico ou, como é agora, do Ministério das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social, auxiliado por outra sucursal do MPLA, a ERCA – Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana, apenas pretende – como aliás consta das suas atribuições – “organizar e controlar”.
“O Ministério da Comunicação Social é o órgão do Governo encarregue de organizar e controlar a execução da política nacional do domínio da informação, e tem as seguintes atribuições:
a) auxiliar o Governo na realização da política nacional da informação;
b) organizar e manter um serviço informativo de interesse público;
c) tutelar a actividade da área da comunicação social;
d) licenciar o exercício da actividade de radiodifusão e televisão;
e) proceder ao registo das empresas jornalísticas e de publicidade, bem como dos programas de radiodifusão sonora e televisão, para efeitos estatísticos, de defesa da concorrência e direitos de autor;
f) autorizar o exercício, em território nacional da actividade de correspondente de imprensa estrangeira e informar o Governo sobre a forma como a profissão é exercida;
g) promover a divulgação das actividades oficiais utilizando para tal a imprensa, conferências, radiodifusão, televisão e outros meios disponíveis;
h) desempenhar outras tarefas superiormente acometidas decorrentes da actividade própria que lhe é inerente.”
Em 2019, João Melo, que falava no acto central alusivo do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, disse, no entanto, ser “compromisso” da tutela trabalhar para que os “progressos e melhorias” no domínio da liberdade de imprensa em Angola “sejam constantes e notáveis”. Como somos ingénuos, acreditamos na altura, continuamos a acreditar hoje, que isso possa acontecer quando Angola for o que ainda não é, um Estado de Direito Democrático.
“Para já, não houve tempo para isso, porque na vida da Humanidade os processos históricos, sociais, políticos e económicos levam, necessariamente, tempo, mas já houve tempo, sim, para que os progressos no domínio da liberdade de imprensa em Angola sejam inegáveis” disse João Melo.
Disse e disse muito bem. José Eduardo dos Santos não conseguiu fazer nos seus 38 anos de Poder. Como o seu discípulo, João Lourenço, é muito mais rápido talvez o consiga fazer nos próximos… 20 anos. Mas isso é muito tempo, dizem os mais críticos. Será. Mas temos de compreender que faltam poderes ao Presidente da República que, alias, é também e apenas Presidente do MPLA, Titular do Poder Executivo e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas.
Segundo João Melo, desde a tomada de posse do Presidente João Lourenço, a 26 de Setembro de 2017, o Governo e a sociedade trabalham juntos para “gradualmente e realisticamente irem introduzindo mudanças e melhorias inegáveis” no domínio da liberdade de imprensa em Angola, mudanças essas, dizemos nós, só aceitáveis se enquadráveis na tese de que o MPLA é Angola e Angola é do MPLA.
Para João Melo, as melhorias registadas, “são inegáveis”, um cenário, frisou, que é “reconhecido pela sociedade a todos os níveis e em várias ocasiões desde os cidadãos comuns a cidadãos com outro nível de responsabilidade”. Basta ver os órgãos públicos para se saber quão enorme são essas melhorias…
“Esse reconhecimento também surge de organizações e entidades internacionais que se dedicam a analisar o estado da informação e da liberdade de imprensa no mundo”, apontou João Melo.
Em 2019, a Repórteres Sem Fronteiras colocou Angola na 109ª posição. Hoje estamos no lugar 104. Segundo João Melo, só não estamos nos dez primeiros porque, explicou, à Repórteres Sem Fronteiras “talvez por falta de informação baseou-se ainda em critérios que na verdade não estão a ser praticados em Angola, embora existam na lei, como os limites financeiros para a criação de novos órgãos”. Chatice. A RSF atreveu-se a publicar um relatório sem fazer o contraditório com os donos do Poder. Lamentavelmente. Se o tivesse feito saberia que Angola estaria talvez nos dez primeiros lugares…
“Por outro lado, o universo de meios que essa organização analisou também está longe de constituir a totalidade dos meios que compõem hoje o sistema de comunicação social em Angola, deixando de fora meios que estão a ter um papel importante no panorama de media do nosso país”, referiu o ex-discípulo de José Eduardo dos Santos, depois convertido aos másculos encantos de João Lourenço.
João Melo manifestou-se igualmente satisfeito pelas “melhorias por todos reconhecidas”, garantindo, contudo, “muito trabalho” para que sejam atingidos “saltos ainda maiores do que aqueles dados desde as eleições de 2017”.
Um jornalismo mais sério, baseado no patriotismo, na ética e na deontologia profissional, era o que o Ministério da Comunicação Social pretendia para Angola. A tese (adaptada do tempo de partido único para a era de único partido) é de Celso Malavoloneke, então adjunto de João Melo para todos os serviços.
Hoje, misturando comunicação social com telecomunicações e tecnologias de informação, o bacanal tornou-se mais visível.
De qualquer modo, quem é o próprio Titular do Poder Executivo (ou qualquer outro dos seus servis auxiliares) para nos vir dar lições do que é um “jornalismo mais sério, baseado no patriotismo, na ética e na deontologia profissional”?
Mas afinal, para além dos leitores, ouvintes e telespectadores, bem como dos eventuais órgãos da classe, quem é que define o que é “jornalismo sério”, quem é que avalia o “patriotismo” dos jornalistas, ou a sua ética e deontologia? Ou (permitam-nos a candura da nossa ingenuidade) com outros protagonistas e roupagens diferentes, estamos a voltar (se é que já de lá saímos) ao tempo em que patriotismo, ética e deontologia eram sinónimos exclusivos de MPLA?
Para alcançar tal desiderato, Celso Malavoloneke informou que o então Ministério da Comunicação Social iria prestar uma atenção especial na formação e qualificação dos jornalistas, para que estes estejam aptos para corresponder às expectativas do Governo.
Como se vê o gato escondeu o rabo mas deixou o corpo todo de fora. Então vamos qualificar os jornalistas para que eles, atente-se, “estejam aptos para corresponder às expectativas do Governo”? Ou seja, serem formatados para serem não jornalistas mas meros propagandistas ao serviço do Governo, não defraudando as encomendas e as “ordens superiores” que devem veicular.
Celso Malavoloneke lembrou que o Presidente da República, João Lourenço, no seu primeiro discurso de tomada de posse, orientou para que se prestasse uma atenção especial à Comunicação Social e aos jornalistas, para que, no decurso da sua actividade, pautem a sua actividade pela ética, deontologia, verdade e patriotismo. E fez bem em lembrar.
Aos servidores públicos, segundo Celso Malavoleneke, o Chefe de Estado recomendou para estarem abertos e preparados para a crítica veiculada pelos órgãos de Comunicação Social, estabelecendo, deste modo, um novo paradigma sobre a forma de fazer jornalismo em Angola.
Vejam-se, hoje, os exemplos das TPA, TV Zimbo, Jornal de Angola, RNA e de todo o exército que o MPLA colocou a pressionar, ameaçar, tentar subornar, os que ainda resistem.
Nós por cá vamos continuar a (tentar) dar voz a quem a não tem. Para nós a verdade é a melhor forma de patriotismo. E a verdade não está sujeita às “leis” do MPLA/Estado. Isto não evita, é claro, que as pressões, as ameaças, os processos por suposta difamação, as tentativas de suborno sejam o pão nosso de cada dia.
Vamos, em síntese, estar apenas preocupados com as pessoas a quem devemos prestar conta: os leitores. Se calhar, parafraseando Celso Malavoloneke, não seremos tão patrióticos como o Governo deseja. Para nós, se o Jornalista não procura saber o que se passa é um imbecil. Se sabe o que se passa e se cala é um criminoso. Daí a nossa oposição total aos imbecis e criminosos.
E, é claro, não temos culpa de a maioria dos imbecis e criminosos, para além dos corruptos, estar no MPLA.