TRIBUNAL SUPREMO FOI FORÇADO A ADMITIR A CARTA DO EX-PR MAS MINISTÉRIO PÚBLICO CONSIDEROU QUE AS DECLARAÇÕES DE JES “NÃO CONSTITUEM PROVA IDÓNEA”

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A carta que o ex-Presidente da República dirigiu ao Tribunal Supremo e que a defesa do antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA) Valter Filipe juntou às provas do ‘Caso 500 milhões’, foi, finalmente, objecto de análise, mas em vão: chamado a pronunciar-se sobre a mesma, o Ministério Público (MP) angolano desvalorizou o seu conteúdo, alegando incumprimento dos requisitos do formalismo legal exigido para que fosse aceite como meio idóneo de prova em juízo.

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Na fase do julgamento em primeira instância, a Câmara Criminal do Tribunal Supremo deixou de admitir a carta que José Eduardo dos Santos fez chegar àquela instância judicial e que constava dos autos como provas da defesa de Valter Filipe, pelo facto de, por um lado, o seu conteúdo se assemelhar à contestação apresentada pela defesa do ex-governador do BNA.

O próprio Ministério Público, já em sede do Tribunal Pleno de Recurso, chegou a solicitar que aquela instância judicial também se pronunciasse sobre a legalidade ou não do procedimento pelo qual a mesma foi obtida, com o objectivo de esclarecer o valor probatório da mesma, já que, segundo o MP, havia uma “clara violação do formalismo legal exigido”, e porque havia também o receio que a sua admissão pudesse fixar jurisprudência nesta matéria e os tribunais passarem a acolher documentos à margem do ‘ritualismo legal’.

O artigo 226.º do Código de Processo Penal (CPP) estatui que o juiz pode ordenar que os depoimentos e as declarações sejam prestadas em qualquer lugar fora do tribunal, sempre que se julgue conveniente para o esclarecimento da verdade, porém, a norma determina que, quer o depoimento da testemunha, quer seja de um declarante, sejam sempre obtidos por um juiz, conforme o comando do artigo 230.º do CPP, por via de uma carta rogatória.

De acordo com o Acórdão que determinou a manutenção da pena aplicada aos arguidos, as declarações de José Eduardo dos Santos não foram obtidas através de uma carta rogatória às autoridades judiciais espanholas, uma vez que, à data dos factos, o mesmo se encontrava em Espanha, em tratamento médico.

“A condição de ex-Presidente da República de Angola não outorga a este o privilégio de prestar declarações por eventual carta, fora do circuito que a lei estabelece, de o ser por via de instituição judicial ou judiciária. Resulta, assim, expressamente destes normativos que a referida carta, sem obediência a este requisito de forma, a ser considerada seria ilegal”, escreve o juiz relator do processo.

FORÇADO A ADMITIR CARTA DE JES

A carta de José Eduardo dos Santos foi, entretanto, admitida por força do Acórdão do Tribunal Constitucional (TC), no qual se lê que o Tribunal Pleno de Recurso, ao ignorar as declarações de antigo titular do Poder Executivo, “conduziu a um julgamento sem a valorização da mesma, considerada essencial, para a descoberta da verdade material, colocando assim em causa a salvaguarda de garantias constitucionalmente consagradas”.

“(…) Nos presentes autos, constata-se que houve uma desconsideração pelo Tribunal a quo e pelo Tribunal ad quem da referida prova junta aos autos antes do julgamento, o que conduziu a um julgamento sem a valorização da mesma, considerada essencial, para a descoberta da verdade material, colocando assim em causa, a salvaguarda de garantias constitucionalmente consagradas, rectius [mais precisamente], o direito à defesa e o princípio do contraditório (…)”, lê-se no Acórdão do TC.

Na deliberação que manteve a condenação de todos os arguidos, o Tribunal Supremo chamou a atenção para o facto de a não admissão deste meio de prova ter ocorrido em sede de primeira instância, decisão segundo aquela instância judicial, que “não foi objecto de recurso para o Tribunal Constitucional”.

“O Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (REI) foi interposto da decisão do Tribunal Pleno que conheceu em sede de recurso interposto pelos recorrentes e pelo Ministério Público da decisão da primeira instância”, fundamenta o acórdão.

Chamado a pronunciar-se em sede de contraditório, após admissão da carta de José Eduardo dos Santos, o Ministério Público reforçou a sua posição:

“Tendo em atenção que as referidas declarações fazem menção de terem sido prestadas na República da Espanha/Barcelona, aos 6 de Fevereiro de 2020, vislumbra-se que não foi observado o formalismo legalmente exigido, porquanto, tratando-se de declarações prestadas no exterior do país, não se atendeu o disposto nos artigos 89.º do CPP de 1929, artigo 176.° nº 2 do CPC e 1º, parágrafo único do CPP, pois dever-se-ia ter expedido uma carta rogatória às autoridades judiciárias espanholas para o cumprimento da diligência”.

O MP explicou igualmente que a carta rogatória é um mecanismo que se utiliza para a prática de actos processuais que exijam a intervenção de serviços judiciários e que sejam solicitados à autoridade estrangeira, procedimento que não teria sido observado por José Eduardo dos Santos, cujo documento, segundo o pronunciamento do órgão de justiça, “nem se quer contém o reconhecimento notarial e das entidades diplomáticas para que [se] lhe fossem atribuídas força e valor jurídico com aceitação e reconhecimento no território angolano”.

“Note-se que as declarações em causa são compostas por quatro folhas, contendo apenas assinatura na última folha, sendo que as demais não foram assinadas nem rubricadas. Por fim, não se percebe quem elaborou o questionário, como o mesmo chegou na posse do engenheiro José Eduardo dos Santos, em que circunstâncias foram prestadas as declarações e como as mesmas chegaram ao processo”, acrescenta o acórdão, concluindo:

“Nestes termos, somos de entendimento que as aludidas declarações não constituem meio de prova idóneo que faça fé em juízo”.

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