DO PÂNTANO NÃO SE SAI A NADO

O título deste texto não é meu, mas sim de um antigo ministro de Marcelo Caetano, em Portugal, de quem tive o gosto de ser amigo e que viveu uma situação muito próxima à que se vive em Angola.
Era um ministro da chamada ala reformista, que queria promover uma transição democrática da ditadura de Salazar e Caetano, pensando que era isso que Caetano também queria. Se Caetano inicialmente o queria ou não, nunca se saberá – o que se sabe é que, na prática, o sucessor de Salazar não fez nenhuma transição democrática, acabando por ser afastado do poder por um golpe de Estado.
A situação actual em Angola tem algumas semelhanças estruturais com a situação portuguesa do início da década de 1970: um regime com cerca de 50 anos e um novo presidente, que em 2017 acenou com uma transição que não se concretizou.
E apesar disso, neste momento, vive-se de novo uma expectativa de transição – não se sabe é para onde.
Os optimistas acreditam que basta esperar por 2027, ano de eleições que esperam que sejam de facto livres e justas, e que de então em diante tudo mudará. Uma simples leitura da Constituição e da lei corrobora teoricamente esta asserção.
Contudo, as dinâmicas políticas e sociais apontam para alternativas mais variadas. Não é prudente esperar por 2027 para ver o que acontece, mas antecipar as mudanças e implementá-las agora.
Os acontecimentos do final de mês de Julho foram um claro aviso. O governo optou, depois disso, por uma prática essencialmente securitária: reprimiu com violência os desacatos, prendeu pessoas e culpou as redes sociais. No entanto, apesar de tudo, vislumbra-se que há, entre os membros do governo, alguma noção e um entendimento mais profundo das causas das manifestações dos protestos, os quais não parecem ser realmente interpretados como meras conspirações orquestradas. Isso é visível em algumas medidas anunciadas, como a da baixa do preço dos táxis ou da inauguração da refinaria de Cabinda, para não falar do texto do deputado do MPLA e académico Paulo de Carvalho, que termina com uma frase lapidar: “Se o MPLA continuar a autodestruir-se, em vez de se actualizar e se modernizar (como querem os seus verdadeiros militantes), o resultado será apenas o seu afastamento do poder – ou pelas urnas, ou pela força.”
É que as conspirações e as redes sociais de oposição ao governo só têm sucesso se encontrarem terreno fértil para os seus objectivos. As redes sociais não passam de meios, não são realidades; as pessoas que estiveram nas ruas não foram criações da inteligência artificial, mas seres de carne e osso.
As redes sociais, embora sejam ferramentas poderosas de comunicação e mobilização, não têm o poder de determinar processos políticos por si só. A sua influência depende, fundamentalmente, da receptividade real da população às mensagens que circulam nelas. Sem um público disposto a envolver-se, a reflectir e a agir com base nos conteúdos compartilhado, as redes permanecem como meros canais de expressão. A eficácia política de uma campanha, movimento ou narrativa digital está directamente ligada à sua capacidade de expressar os valores, os interesses e as experiências das pessoas. Assim, é a interacção entre tecnologia e contexto social que define o impacto político das redes — não a tecnologia em si.
Diante da crescente agitação social em Angola, torna-se impensável manter “mais do mesmo” e repetir os habituais padrões políticos que têm gerado insatisfação. A conjuntura exige uma resposta concreta aos anseios da população, que têm gerado reivindicações legítimas de justiça social, participação e melhoria das condições de vida. Para evitar o agravamento da instabilidade, é essencial iniciar uma transição efectiva rumo a um governo verdadeiramente inclusivo, capaz de representar a diversidade do país e praticar uma escuta activa. Isso implica não apenas abrir canais de diálogo, mas também implementar políticas que reflictam as vozes dos cidadãos e promovam uma governação mais transparente, equitativa e empenhada no bem comum.
A repetida exigência de uma nova Constituição consensual em Angola reflecte o desejo profundo da sociedade por um pacto político renovado, que represente de forma legítima e equilibrada todos os segmentos da população. A actual Constituição é centralizadora e pouco representativa, e já não responde aos desafios contemporâneos do país. Uma nova Constituição, construída com ampla participação e diálogo, poderá estabelecer bases sólidas para uma democracia mais robusta, garantir direitos fundamentais com maior eficácia e redefinir o equilíbrio entre os poderes do Estado, promovendo maior transparência e responsabilidade institucional.
Além disso, a descentralização do poder e a reformulação da política económica são pilares indispensáveis para uma Angola mais justa e eficiente.
A concentração excessiva de decisões em Luanda tem gerado desigualdades regionais profundas, sufocando o potencial de desenvolvimento local. Ao transferir competências e recursos para os governos provinciais e municipais, o país pode estimular a participação cidadã, melhorar a prestação de serviços públicos e dinamizar as economias locais.
Paralelamente, é urgente repensar a política económica de Angola com foco na contenção do despesismo público, na promoção da liberdade económica e na criação de condições equitativas de concorrência para todos os agentes. Isso implica reduzir o peso do Estado burocrático na economia, eliminar privilégios injustificados e garantir que o mercado funcione de forma transparente e acessível. Sem estas reformas estruturais, o país corre o risco de perpetuar ciclos de exclusão, ineficiência e instabilidade, comprometendo o seu desenvolvimento sustentável e a confiança dos cidadãos nas instituições.
Este é o momento crucial para iniciar a transição política em Angola, porque os sinais de desgaste do modelo actual são cada vez mais evidentes e a pressão social exigindo mudança tornou-se incontornável.
A juventude, que representa a maioria da população, está mais informada, conectada e exigente, recusando-se a aceitar práticas políticas que perpetuam a exclusão, a corrupção e a estagnação. A pobreza persistente da generalidade da população, apesar dos números oficiais, aliada ao desemprego e à degradação dos serviços públicos, intensifica a urgência de uma nova abordagem governativa. Adiar a transição será ignorar os sinais claros de ruptura e desperdiçar a hipótese de construir um futuro mais inclusivo, estável e próspero para todos os angolanos.
