ÁFRICA NÃO É VÍTIMA: É REFÉM DAS SUAS PRÓPRIAS LIDERANÇAS

As minhas reflexões sobre o discurso do João Manuel Gonçalves Lourenço (JLO), a 17ª edição da Cimeira de Negócios Estados Unidos África.
Luanda, capital de Angola, está esta semana sob os holofotes internacionais ao acolher a 17ª edição da Cimeira de Negócios Estados Unidos África, promovida pelo Conselho Corporativo para África (CCA). Trata-se de um feito simbólico: entre todas as edições já realizadas, apenas seis ocorreram no continente africano. Receber esta cimeira é, de facto, motivo de registo diplomático e politicamente útil num ano marcante, como os 50 anos da Independência de Angola.
A presença de chefes de Estado africanos, empresários de topo, executivos da banca, gigantes da energia, tecnologia e indústria mostra o esforço conjunto de apresentar África como um continente de oportunidades. Entretanto, por trás das luzes, dos painéis interativos e da retórica embalada para investidores, escondem-se as contradições profundas que continuam a impedir o verdadeiro desenvolvimento do continente.
Durante a cerimónia de abertura, o Presidente João Lourenço proferiu um discurso fortemente marcado pelo otimismo. Falou de África como “motor de crescimento global”, exaltou a juventude do continente, destacou o crescimento económico angolano de 3,5% e ainda declarou que os EUA, “por nunca terem colonizado nenhum país africano”, estariam em posição de ter uma visão “descomplexada” sobre o continente.
Mas é justamente aí que se encontra a falácia, o autoengano e a manipulação da narrativa.
1. RETÓRICA VERSUS REALIDADE: A FESTA DE CIMEIRAS CONTRASTA COM A FOME DIÁRIA
É inegável o valor simbólico de Angola sediar uma cimeira desse porte. No entanto, o evento ocorre num país onde mais de 50% da população vive abaixo da linha da pobreza, conforme dados do Instituto Nacional de Estatística. Estamos a falar de cerca de 17 milhões de angolanos em estado de penúria, muitos dos quais sem acesso a água potável, alimentação básica, saúde pública funcional ou ensino de qualidade.
Enquanto empresários e políticos brindam à “cooperação”, milhões sobrevivem com menos de 2 dólares por dia. O crescimento económico de 3,5% citado por Lourenço, longe de ser motivo de celebração nacional, é um número técnico, concentrado nos lucros do petróleo e da mineração setores que historicamente beneficiam apenas as elites políticas e empresariais.
A educação continua degradada, com escolas sem carteiras e professores sem salário. A juventude, tida como “ativa e inovadora” no discurso, sofre com o desemprego estrutural, sendo empurrada para a informalidade ou para a emigração.
E é aqui que o discurso entra em colapso moral: como se pode exaltar a juventude africana como “potência de desenvolvimento” enquanto milhares desses jovens atravessam desertos, enfrentam redes de tráfico humano, embarcam em botes precários e morrem afogados no Mediterrâneo tentando fugir dos seus próprios países?
Como podem ser considerados “força de crescimento” por quem governa, se o que mais querem é fugir da realidade criada por esses próprios líderes? A juventude africana não foge da África: foge dos governos africanos. Foge da fome, da humilhação, da ausência de perspectivas. Muitos nem sequer chegam à Europa; morrem afogados, esquecidos no mar, sem nome, sem funeral, sem história.
Aqueles que sobrevivem e conseguem chegar aos países europeus ou americanos enfrentam novas camadas de violência: são marginalizados, deportados, explorados e empurrados para trabalhos informais, vivendo na ilegalidade, com medo, à margem da dignidade humana.
Não há potência no que se destrói. Não há futuro no que se abandona. A juventude africana é hoje a maior vítima de uma elite política que a exalta nos discursos e a condena, todos os dias, na prática. Nenhuma narrativa institucional consegue esconder o fato de que esses jovens estão sendo obrigados a abandonar suas raízes por falta de alternativas reais. E os que deveriam defendê-los são os mesmos que os empurram para a morte ou para o exílio.
A FALÁCIA DA VISÃO “DESCOMPLEXADA” DOS ESTADOS UNIDOS
João Lourenço afirmou que os Estados Unidos, por não terem colonizado países africanos, devem ter uma visão “diferente” e “descomplexada” sobre África. Esta frase, aplaudida num contexto diplomático, é, na prática, uma falácia política perigosa. O fato de os EUA não terem sido colonizadores diretos não os torna neutros ou especialmente benevolentes em relação ao continente.
Os Estados Unidos estiveram e estão profundamente envolvidos em dinâmicas geopolíticas, extração de recursos e apoio a regimes autoritários africanos, desde a Guerra Fria até hoje. O simples facto de não terem colonizado não lhes confere uma vantagem moral ou estratégica sobre os antigos colonizadores europeus. A visão dos EUA sobre África continua a ser estratégica e utilitária, baseada em interesses económicos e geopolíticos não em altruísmo.
Portanto, usar esse argumento como fundamento para um “novo tipo de relação” entre África e os EUA não só é simplista, como tenta desviar o foco daquilo que verdadeiramente emperra o desenvolvimento africano: as más decisões internas e a falência das lideranças locais.
OS VERDADEIROS CULPADOS: PRESIDENTES QUE NÃO SABEM GOVERNAR
África não se encontra atrasada por causa da visão que o mundo tem dela. Está atrasada porque as suas lideranças falharam de forma escandalosa. São décadas de independência mal gerida, recursos naturais saqueados por elites internas, instituições transformadas em instrumentos de controle político e uma total ausência de planeamento estratégico a longo prazo.
Muitos dos presidentes africanos não têm preparação, nem visão de Estado, nem compromisso com o bem comum. Não sabem governar, não entendem de políticas públicas, não ouvem os seus povos. A maioria governa para manter-se no poder, para enriquecer os seus grupos e calar opositores.
E é por isso que cimeiras como esta se tornam ironicamente trágicas: celebram-se acordos bilaterais, trocam-se cartões de visita, tiram-se fotos sorridentes, mas nenhuma dessas cenas remove um povo da miséria quando quem governa é o primeiro entrave ao desenvolvimento.
A 17ª Cimeira de Negócios EUA-África em Luanda é importante simbolicamente. Mas a sua eficácia real dependerá da honestidade com que os próprios líderes africanos olharem para dentro de casa. Nenhuma retórica internacional, nenhuma aliança com superpotência, nenhum evento televisionado mudará o destino da África enquanto os seus próprios dirigentes continuarem a negar a realidade.
África não precisa de condescendência externa. Precisa de ruptura interna. Precisa de uma nova geração de líderes competentes, sérios, corajosos capazes de devolver ao continente a dignidade que ele merece. Até lá, toda cimeira será apenas mais um espetáculo de diplomacia para inglês ou americano ver.
– [x] Henda Ya Xiyetu
Criador de Opinião | Opinion Maker | Créateur d’Opinion.
“As opiniões expressas são pessoais e visam provocar reflexão crítica e construtiva sobre temas que impactam nossa sociedade.”
