A FARRA DOS AUTOCARROS – RAFAEL MARQUES DE MORAIS

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Até ao final do mandato, João Lourenço terá gastado quase 800 milhões de dólares em aquisições de autocarros, sem nenhum resultado palpável, visível ou assinalável na melhoria da mobilidade da população e, em especial, da mobilidade das crianças em idade escolar.

PORTAL O LADRÃO

Com o aumento recente do preço dos combustíveis e dos transportes públicos e privados, e com os níveis incomportáveis de pobreza generalizada, em Luanda, muitos cidadãos já não conseguem pagar os táxis de azul e branco para se deslocarem ao serviço ou à escola.

As enchentes e as lutas à volta dos autocarros públicos são cada vez mais aterradoras, são um cenário desesperante. Não há clemência para com o sofrimento dos cidadãos.

Enquanto isso, o governo gasta centenas de milhões de dólares em autocarros, invocando a mobilidade dos estudantes e a melhoria dos transportes urbanos, quando a realidade demonstra o contrário.

Só na zona do Zango 3, no município de Viana, há 65 autocarros novos, de marca Volkswagen Caio e Marcopolo, escondidos desde 2021. Esses autocarros fazem parte de uma frota de 1500 autocarros importados pelo governo no âmbito do “reforço da rede de transporte urbano regular em todo o país” e têm sido usados exclusivamente para as campanhas políticas do MPLA, o partido no poder há 49 anos.

Trata-se de um projecto inicialmente aprovado pelo antigo chefe de Estado José Eduardo dos Santos, através do Despacho Presidencial n.º 219/17, para a implementação do Programa de Transportes Escolares. Na altura, segundo o referido despacho, os 1500 autocarros estavam avaliados em 306 milhões de dólares, e a sua aquisição era assegurada por um financiamento da empresa austríaca Gotrans GmbH. O objectivo principal do programa era o de garantir a mobilidade dos estudantes em todo o país através dos transportes públicos e reduzir os índices de abandono escolar.

Por sua vez, o Despacho Presidencial n.º 168/19, de João Lourenço, aboliu o Programa de Transportes Escolares. Com esta decisão, o presidente ordenou a afectação dos 1500 autocarros para “o reforço da rede de transporte urbano regular de passageiros em todo o país”.

João Lourenço considerou que o Programa de Transportes Escolares era insustentável, dada “a complexidade de gestão e manutenção de uma rede de transporte escolar gratuito para o ensino público”. Alegou ainda, no mesmo despacho, que tal insustentabilidade se devia “à actual situação económico-financeira e reforma administrativa do Estado em curso”.

Como alternativa, Lourenço deu instruções para a implementação de passes sociais “para os estudantes nos transportes públicos rodoviários urbanos regulares”. Para tal, indicou ao ministro dos Transportes, Ricardo Abreu, que alterasse o contrato celebrado com a empresa brasileira Asperbras Limitada (ora Adone Project Management), a vendedora dos 1500 autocarros.

De acordo com informações disponibilizadas no seu website, “até Dezembro de 2022, a Grand Lakes e a Adone Project Management entregaram mais de 1500 ônibus equipados com tecnologia de vanguarda”. Trata-se dos autocarros Volkswagen Caio e Marcopolo, com capacidade para 65 passageiros sentados.

Conforme informação disponibilizada online pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), do Ministério dos Transportes, dos 1500 autocarros entregues, 742 autocarros serviram para a “implantação da nova rede de transporte colectivo na província de Luanda”. Estes autocarros, explica o documento, “foram distribuídos para as empresas operadoras através de contrato público”.

Segundo a ANTT, do primeiro lote, desde 2020, o Estado entregou os autocarros destinados a Luanda às seguintes operadoras privadas: Angoaustral (65), Angoreal (92), Camcon (15), Cidrália (32), Impala (9), Macon (55), Rosalina (48), e Strang (20). Por sua vez, a empresa pública de Transportes Colectivos Urbanos de Luanda (TCUL) recebeu 222 autocarros, enquanto o Gabinete Provincial do Tráfego, Transporte e Mobilidade Urbana do Governo Provincial de Luanda apropriou-se de 104 autocarros para uso privado.

Fontes do Maka Angola afirmam que os governadores das províncias beneficiárias escolheram arbitrariamente as operadoras locais a quem distribuíram os autocarros. A título de exemplo, em menos de quatro anos, a Angoaustral, que recebeu um total de 75 autocarros novos, tem actualmente apenas 20 autocarros em circulação.

Todavia, a fornecedora brasileira e a sua associada Grand Lakes Veículos vangloriam-se de terem desempenhado “um papel fundamental na melhoria da mobilidade urbana em Angola”, com autocarros de última geração.

Então, onde estão esses autocarros? Que melhorias na mobilidade urbana constatam os cidadãos angolanos?

Segundo a propaganda da Adone Project Management e da Grande Lakes Veículos, o projecto conta ainda com a manutenção da frota dos autocarros fornecidos, a sua monitoria e gestão operacional. Desse modo, essas entidades associadas “continuam liderando a transformação da mobilidade urbana em Angola, melhorando a qualidade de vida da população e promovendo um sistema de transporte público moderno e sustentável”.

Onde se encontra essa melhoria da qualidade de vida da população por conta da mobilidade urbana e do sistema de transporte público moderno e sustentável?

O que estes factos demonstram é que não há uma política pública de mobilidade urbana, assente em pressupostos racionais e de eficiência. O que temos é uma distribuição arbitrária de autocarros que se realiza como se da mera distribuição de jinguba se tratasse.

Basta ver que, em Luanda, foram atribuídos 742 autocarros, mas feitas as contas apenas se consegue descobrir 662, ou que a Angoaustral obteve 75 veículos, dos quais apenas 20 se encontram nas estradas. E não se percebe qual o uso privado que foi dado a 104 autocarros pelo Governo Provincial de Luanda. Estas interrogações, que não têm de momento resposta, comprovam que, mais uma vez, estamos perante casos de opacidade, ineficácia, no fundo, de desperdício, na utilização dos fundos públicos.

Mais 500 autocarros

Passados dois anos, João Lourenço aprovou, pelo Despacho Presidencial n.º 215/21, uma adenda ao contrato de fornecimento com a Adone Project Management para mais 500 autocarros, no valor de 136,6 milhões de dólares. Feitas as contas, trata-se de um total de dois mil autocarros no valor total de 442 milhões de dólares.

No mesmo despacho, o presidente voltou a referir-se que os 1500 autocarros se enquadram no âmbito dos “equipamentos e serviços de assistência técnica para a concepção e implementação do Programa de Mobilidade Escolar”.

Um ano depois, João Lourenço considerou “a necessidade de se melhorar o transporte urbano, a mobilidade escolar, bem como os serviços de assistência aos passageiros para garantir melhor qualidade de vida dos cidadãos”, e exarou o Despacho Presidencial n.º 253/22. Neste despacho, aprovou o acordo de financiamento entre a empresa austríaca Gotrans GmbH e o Estado angolano, no valor de 116 milhões e 152 mil dólares, para a aquisição dos já mencionados 500 autocarros, “equipamentos e serviços de assistência técnica para a concepção e implementação do Programa de Mobilidade Escolar”. Esse financiamento externo serviu para pagar os 500 autocarros e as concepções acessórias, orçados no valor global de 136,6 milhões de dólares.

Finalmente, há o Despacho Presidencial n.º 111/24, de 17 de Maio, que autoriza uma despesa de 323,5 milhões de euros para a celebração de mais um contrato de fornecimento de 600 autocarros. Temos, então, cerca de 790 milhões de dólares que foram gastos, na era de João Lourenço, para adquirir autocarros sem prestação de contas, supervisão ou fiscalização dos referidos programas de mobilidade urbana e escolar.

Esse valor deverá aumentar exponencialmente com a aquisição de mais 900 autocarros, prevista nas contas do governo até 2027, o último ano da era Lourenço.

O termo “mobilidade escolar” é usado apenas como justificação para os desembolsos do erário público e não tem qualquer aplicação prática na realidade. Onde está a política pública para o sector dos transportes públicos em Angola, que mereça a aprovação e a confiança dos cidadãos? Como se pode pensar que o governo tem um plano sério para resolver o problema de mobilidade dos cidadãos, sobretudo em Luanda?

Fica-se com a impressão de que o chefe do governo, o presidente da República, se limita, aparentemente, a gastar o erário público, a distribuir as suas aquisições para os privados e a repetir o mesmo processo tantas vezes quantas forem necessárias para benefício exclusivo de alguns grupos de interesses.

Nas áreas rurais, sobretudo, há milhares de crianças a caminharem mais de 10 quilómetros de distância para chegarem à escola. Não se conhece, pelo menos publicamente, nenhuma política pública destinada a melhorar a mobilidade dos cidadãos, fundamentalmente dos estudantes e professores, nas áreas rurais. Por exemplo, na comuna de Kaniñili, no município do Kuito, Bié, as crianças da Aldeia Nguaiu têm de caminhar a pé, todos os dias, um total de 40 quilómetros para chegarem à Escola Primária n.º 9 Luciano Salúcio e regressarem a casa.

É possível encontrar soluções locais baratas, que consistiriam na organização de uma rede de transportes para a mobilidade dos estudantes nas áreas rurais, com recurso às motorizadas de três rodas. Em muitas dessas localidades rurais, os “kaleluyas”, como são chamados, constituem o único meio de transporte para as comunidades locais. Estas podem organizar-se para adquirirem, por via de créditos bancários bonificados e com garantia do Estado, o número de “kaleluyas” necessários para o serviço de transporte dos estudantes e dos professores e para uso como táxis locais, de modo a rentabilizá-los.

Não havendo políticas públicas consistentes, o que temos é um aprofundamento da discriminação do rural face ao urbano. Gastam-se milhões nas cidades (sem que se notem resultados minimamente expressivos), e não se asseguram as ligações às zonas interiores e rurais e entre elas, acentuando-se cada vez mais o fosso entre cidade e campo. Cria-se uma Angola a duas velocidades.

A discriminação é também de natureza contratual, pois não se entendem os critérios de escolha e distribuição dos autocarros, parecendo assentar em vontades invisíveis ou indescortináveis.

Em conclusão, o presidente João Lourenço é lesto em gastar os dinheiros públicos sem quaisquer preocupações visíveis e institucionais com os resultados e consequências dos seus actos sobre a vida das populações. Desse modo, o presidente dá a impressão de que não sabe governar, e o seu legado parece estar a ser firmado nos caminhos da má gestão, da opacidade e da impunidade. 2027 está quase a chegar. Nessa altura, os actos de João Lourenço tornar-se-ão objecto de todo o escrutínio público e quiçá judicial. Conseguirá ele dormir tranquilo depois de tanta falta de transparência e relaxamento dos critérios legais de boa governação?

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