O ESCÂNDALO DOS AUTOCARROS: CARTA A JOÃO LOURENÇO

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A Sua Excelência
O Presidente da República

João Manuel Gonçalves Lourenço

Excelência,

Há momentos em que é preciso dizer basta. Este é um desses momentos.

O Despacho Presidencial n.º 111/24, de 17 de Maio, autoriza uma despesa de 323,5 milhões de euros para a celebração de um contrato de fornecimento de 600 autocarros. Trata-se de uma decisão que simboliza e evidencia que chegou o momento em que a nação a que Vossa Excelência preside não pode suportar mais procedimentos de contratação simplificada que oneram de forma absurda o erário público.

Segundo o Despacho Presidencial referido, cada autocarro custaria a quantia de aproximadamente 540 000,00 euros. Ou seja, Vossa Excelência aprovou que o país (com os dinheiros públicos que pertencem a todos os cidadãos) gastasse mais de meio milhão de euros por cada viatura.

Este preço unitário – que está longe dos preços de tabela consultados, segundo os quais o valor deste tipo de autocarros oscila entre os 150 000 e os 250 000 euros – já originou muita discussão pública. Verifico que, obviamente, há uma clara sobrefacturação no valor de cada autocarro, originando, possivelmente, mais-valias líquidas superiores a 100%. Contudo, não vou aprofundar este ponto, deixando-o para os especialistas em transportes.

O problema essencial é o do uso recorrente, repetido e constante do Procedimento da Contratação Simplificada.

O Procedimento da Contratação Simplificada está, naturalmente, previsto na Lei dos Contratos Públicos. Todavia, trata-se de um procedimento excepcional, sujeito a regras apertadas, designadamente de valor, ou as previstas no artigo 26.º dessa lei, o que implica que tal escolha procedimental seja sempre justificada. Ora, não se vislumbrando nenhuma justificação no Despacho Presidencial n.º 111/24, este torna-se automaticamente nulo por falta de fundamentação.

Permito-me acrescentar que a norma que Vossa Excelência invoca no despacho abre a possibilidade da contratação simplificada apenas em casos “de financiamento externo, quando, em decorrência de negociações, não seja possível promover procedimentos concorrenciais entre as várias empresas elegíveis, e existam limitações impostas pela entidade financiadora quanto à entidade a contratar, para a formação e execução de contratos comerciais” (artigo 26.º, n.º 1 e) da Lei dos Contratos Públicos).

Com o devido respeito, nenhuma destas circunstâncias parece verificar-se no caso da aquisição dos 600 autocarros, nem é descrita no despacho.

Este é o problema com que Vossa Excelência se confronta. O Vosso Despacho é nulo por falta de fundamentação e por não se verificarem os pressupostos para a contratação simplificada.

Portanto, é o momento de terminar com o uso, manifestamente inadequado face à lei, deste procedimento.

A transparência, o bem comum e a boa governação exigem o fim desta situação, e que Vossa Excelência promova concursos públicos concorrenciais, abertos e benéficos para o interesse público.

Por sua vez, a Assembleia Nacional deve exercer os poderes de fiscalização do Poder Executivo que lhe foram manifestamente concedidos pela recente revisão constitucional. Os processos de decisão política referentes a financiamentos devem ser claros, transparentes e sindicados na Assembleia Nacional.

O Presidente da República tem uma função eminentemente pedagógica, servindo de exemplo e educando o comportamento cívico na comunidade política, pelo que deve ser o primeiro a promover as boas práticas. A sua reputação é a reputação de Angola.

Casos como o deste Despacho Presidencial deixam forte mácula na figura do Presidente da República e no prestígio de Angola.

Além de não se aceitar o preço unitário dos autocarros, não se entende qual é o papel desempenhado neste processo por empresas intermediárias, sem experiência no ramo, com sedes em Portugal ou no Dubai. Trata-se da Opaia Europa Limitada, sediada em Portugal, e da IDC International Trading DMCC. Esta última está registada no paraíso fiscal do Dubai em nome do cidadão angolano Agostinho Pinto João Kapaia, o sócio principal do Grupo Opaia S.A. (Angola).

Criada em 2018, a IDC, segundo breve investigação por nós conduzida, teve o seu melhor ano financeiro em 2021, com receitas no valor de 3,7 milhões de dólares. Desde essa data até aos contratos presidenciais, a empresa tinha tido uma facturação de apenas alguns milhares de dólares anuais.

O mesmo Kapaia é o sócio maioritário da Opaia Europa Lda (60%), registada em Portugal, em 2013, com um capital social de 5 000 euros, enquanto o seu Grupo Opaia S.A detém os restantes (40%). O referido empresário também é o gerente das duas empresas do consórcio.

O Ministério dos Transportes já veio, entretanto, fazer uma interpretação abusiva do referido Despacho Presidencial, dizendo o que não estava lá. Na Nota de Esclarecimento de 21 de Maio, o órgão tutelado pelo ministro Ricardo Daniel Sandão Queirós Viegas d’Abreu inclui no valor a construção de uma fábrica de autocarros, que não é mencionada no documento presidencial. Assim, não só é desautorizado o Presidente da República – o que é bizarro –, como também se adiciona mais uma ilegalidade ao documento, uma vez que lhe é dado um âmbito e alcance não explicitados no texto.

Além disso, as explicações do Ministério dos Transportes complicam tudo ainda mais. Ao referir tratar-se de autocarros Volvo, não se explicam as razões pelas quais, havendo um concessionário Volvo em Angola desde 1991 – a Auto-Sueco –, é necessário ir buscar intermediários a outros países.

Nos últimos dois anos, Vossa Excelência comprometeu mais de 1,173 mil milhões de euros de fundos públicos a empreitadas que envolvem o Grupo Opaia S.A, usando o Procedimento de Contratação Simplificada.

Só em 2022, num intervalo de três meses, Vossa Excelência emitiu três despachos presidenciais a favor do Grupo Opaia S.A, suas subsidiárias e consórcios.

Vossa Excelência autorizou, com o Despacho Presidencial n.º 129/22, de 18 de Maio, a abertura de uma linha de crédito de 125,5 milhões de euros para a construção e o apetrechamento do Hospital Pediátrico do Huambo. Por Procedimento de Contratação Simplificada, segundo o anterior Despacho Presidencial n.º 39/21, de 13 de Abril, a obra foi entregue ao consórcio liderado pela Opaia Construções Limitada, do Grupo Opaia S.A.; à IDC International Trading DMCC, baseada no Dubai; e a uma Wedo Developments Limited. Em 2021, a Wedo Developments, sediada em Inglaterra, tinha 100 libras na sua conta e, no ano do contrato milionário (2022), apresentava um extracto bancário de 71 000 libras. Os seus proprietários são residentes no Bairro do Tchioco, na Zona Industrial do Lubango, província da Huíla. Trata-se dos cidadãos portugueses Pedro Miguel Marques Vieira dos Santos e António Henrique Marques Antunes.

Este pequeno exemplo demonstra que a empresa Wedo era aquilo que se denomina uma “empresa dormente”. De repente, acordou para milhões. Tal é, obviamente, um alerta vermelho para qualquer autoridade financeira global.

Por Despacho Presidencial n.º 161/22, de 17 de Junho, Vossa Excelência autorizou a assinatura de três contratos, no valor de 357,5 milhões de euros, a favor do consórcio constituído pelo Grupo Opaia S.A, Casais Angola, Gauff Gmbh, Engineering KG e CNT BAU Gmbh, para estudos e construção das estações de tratamento de águas e do Sistema de Distribuição do Quilonga Grande.

Por Despacho Presidencial n.º 203/22, de 12 de Julho, Vossa Excelência aprovou a concessão de uma Garantia Soberana a favor do Grupo Opaia S.A, para a construção de uma fábrica de fertilizantes no Soyo, província do Zaire, no valor total de 350 milhões de dólares. A garantia servia para a cobertura de um financiamento de 1,76 mil milhões de dólares do African Export-Import Bank (Afreximbank).

No ano passado, o Despacho Presidencial n.° 221/23, de 14 de Setembro, autorizou a adjudicação das obras de reabilitação e apetrechamento das morgues de Luanda, pelo valor total de 45,4 milhões de euros, ao consórcio Opaia Europa Limitada e Makiber, S.A., de Espanha.

Trata-se de um grupo “faz-tudo”? Temos um grupo empresarial envolvido, ao mesmo tempo, em contratos com o governo para a aquisição de autocarros, construção e apetrechamento de um hospital pediátrico, morgues, fábrica de fertilizantes, bem como construção de estações de tratamento de águas.

Afinal, o que é o Grupo Opaia? A descrição na enciclopédia virtual afirma que na, “sua maioria, os [seus] projectos encontram-se numa fase inicial”. Como é que um grupo supostamente fundado em 2002 tem a maioria dos projectos na fase inicial? Levanto a questão.

A resposta deveria ser dada pelos mecanismos de transparência e boa governação assegurados por Vossa Excelência, senhor Presidente da República.

Em resumo, é imperativo que Vossa Excelência revogue o Despacho Presidencial n.º 111/24, de 17 de Maio, que é substantivamente nulo. E que garanta a dignidade e a reputação do cargo de Presidente da República de Angola.

Subscrevemo-nos muito respeitosamente,

Rafael Marques de Morais, cidadão angolano.

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